Sob o tema “APIB somos todos nós: Em defesa da Constituição e da vida”, o 21º Acampamento Terra Livre (ATL), maior assembleia indígena do Brasil, reuniu entre os dias 7 e 11 de abril de 2025, em Brasília (DF), mais de 6 mil indígenas de todas as regiões do país, além de representantes da América Latina e de povos insulares do Pacífico. O encontro celebrou os 20 anos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), reafirmando o papel central dos povos originários na luta contra a crise climática e na defesa dos seus direitos constitucionais.
Como de costume no ATL, o espaço do acampamento ficou tomado por tendas temáticas que abrigaram debates promovidos pelas organizações regionais da APIB. O espaço também foi marcado pela diversidade cultural dos povos, com a presença de artesanatos e expressões artísticas indígenas.
A Câmara de Conciliação sobre o marco temporal, conduzida pelo ministro Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal (STF), foi alvo de críticas durante o encontro, sendo considerada uma tentativa de reconfigurar a política indigenista para enfraquecer direitos assegurados pela Constituição de 1988.
Embora o STF tenha declarado a tese do marco temporal inconstitucional em 2023, a criação da Câmara é vista por lideranças indígenas como uma manobra institucional para atender às pressões da bancada ruralista. A articulação entre setores do agronegócio e representantes do Legislativo busca reverter a decisão do Supremo por meio da tramitação da PEC 48/2023 e da formulação de um anteprojeto que, na prática, retoma os fundamentos do marco temporal. Entre os pontos polêmicos estão a proposta de indenização por terra nua, o enfraquecimento do direito das comunidades à consulta livre, prévia e informada e a possibilidade de uso da Polícia Militar em ações de reintegração de posse.
Para o movimento indígena, a Câmara de Conciliação deixou de ser um espaço de diálogo e passou a operar em favor de uma agenda ruralista. Diante desse cenário, a APIB decidiu se retirar do espaço em agosto de 2024, exigindo sua extinção e a revogação da Lei 14.701/2023, que consolida retrocessos no campo dos direitos territoriais indígenas.
As duas grandes marchas que aconteceram durante o ATL, refletiram a revolta dos povos indígenas frente aos ataques aos seus direitos nas instâncias de poder do Estado brasileiro. Milhares de indígenas caminharam até a Esplanada dos Ministérios levando uma réplica da estátua da Justiça com um cocar — símbolo da campanha por dignidade, demarcação e reparação histórica. A última marcha, que aconteceu no dia 10/04, foi violentamente reprimida pela polícia, resultando em pessoas feridas, entre elas mulheres, crianças, idosos e a deputada federal Célia Xakriabá. Diversas instituições, como o ISPN, manifestaram repúdio à violência e solidariedade aos povos indígenas.
Com a realização da 30a Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (COP-30) marcada para novembro, em Belém (PA), o ATL deste ano deu destaque às pautas climáticas. A APIB lançou sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) Indígena, construída com suas regionais. O documento apresenta seis eixos prioritários: mitigação, adaptação, financiamento, transferência de tecnologia, capacitação, justiça e co-benefícios. A proposta reforça a necessidade de equidade, autodeterminação e participação indígena efetiva nas políticas climáticas do Brasil, conforme o Acordo de Paris.
No mesmo dia, o Ministério dos Povos Indígenas anunciou a criação da Comissão Internacional Indígena para a COP-30, presidida pela ministra Sonia Guajajara. A comissão reúne organizações como a APIB, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), o G9 da Amazônia Indígena, a Aliança Global de Comunidades Territoriais e o Fórum Permanente da ONU sobre Assuntos Indígenas. A meta é garantir a credencial de mil representantes indígenas do Brasil para a Zona Azul da COP, espaço onde ocorrem as negociações globais sobre o clima.
A plenária de lançamento contou com a presença da ministra Marina Silva (Meio Ambiente) e do presidente da COP-30, embaixador André Corrêa do Lago. A iniciativa integra a campanha global “A Resposta Somos Nós”, da APIB, que defende a demarcação dos territórios indígenas como política essencial para o combate à crise climática.
O ATL 2025 também se destacou pela presença de delegações indígenas de mais de 15 países, incluindo representantes da Bacia Amazônica, da Austrália, Fiji e da Aliança Global de Comunidades Territoriais. Entre os grupos presentes estavam os Pacific Climate Warriors, reconhecidos por sua atuação em conferências da ONU, o G9 da Bacia Amazônica e a Troika Indígena, aliança estratégica entre lideranças do Brasil, Pacífico e Austrália para garantir presença contínua nas COPs 29, 30 e 31.
Durante o evento, foi lançada a declaração “Unidos pela Força da Terra: A Resposta Somos Nós”, que denuncia a inação dos governos diante da emergência climática e reivindica igualdade de voz e poder de decisão para os povos indígenas nas instâncias da COP-30, além de financiamento direto, transição energética justa e reconhecimento da centralidade dos saberes indígenas na proteção da biodiversidade global. Saiba mais aqui.
Outro momento importante do Acampamento Terra Livre (ATL) 2025 foi o espaço concedido pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) à Coordenação das Organizações e Povos Indígenas do Maranhão (Coapima), para compartilhar avanços e desafios na gestão ambiental e territorial dos territórios indígenas do estado.
Entre as iniciativas destacadas estiveram o Projeto Hamy, voltado à criação de uma rede de atenção oncológica indígena, e a proposta do Instituto Tukan para a criação de uma universidade indígena na Terra Indígena Araribóia. Nesse contexto, o Mosaico Gurupi ganhou centralidade no debate como uma estratégia estruturante para a proteção territorial no Maranhão.
O secretário executivo do conselho gestor do Mosaico Gurupi, Antônio Wilson Guajajara, ressaltou o papel da iniciativa como ferramenta para o fortalecimento da governança indígena e apoio direto às comunidades. Localizado entre o Maranhão e o Pará, o Mosaico Gurupi reúne seis Terras Indígenas e uma unidade de conservação, e está em processo de formalização pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Trata-se do último remanescente de floresta amazônica no Maranhão e no leste do Pará.
A comunicação indígena do Mosaico Gurupi também teve atuação marcante durante o ATL. Jovens comunicadores da formação Vozes do Gurupi participaram ativamente da cobertura colaborativa promovida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), além de realizarem registros audiovisuais para suas próprias organizações e territórios. A equipe também participou de uma oficina especial sobre técnicas de cobertura jornalística, entrevistas e produção audiovisual, incentivando os participantes a documentar as vozes de suas lideranças e as diversas manifestações ao longo do evento.
A formação Vozes do Gurupi integra o projeto Gestão e Restauração no Mosaico Gurupi, executado pelo ISPN em parceria com a Coapima e com apoio do Programa Copaíbas, do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio). A oficina foi conduzida pelo Coletivo 105, organização parceira responsável pela implementação do componente de comunicação do projeto.
Além disso, o ISPN apoia a consolidação do Mosaico Gurupi por meio do projeto Paisagens Indígenas, uma iniciativa realizada em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e o Instituto Nupef, com apoio da Iniciativa Internacional para o Clima e Florestas (NICFI). A proposta fortalece a articulação entre povos indígenas, organizações da sociedade civil e instâncias de governo em defesa da floresta e dos modos de vida indígena.
No encerramento do ATL, a APIB divulgou a carta final do encontro, intitulada “A Resposta Somos Nós”. O documento reforça o compromisso com a defesa da Constituição, Mãe Terra e da vida.
Entre os principais pontos, estão:
- Demarcação como política climática: retomada urgente das demarcações de terras indígenas, essenciais para a proteção ambiental;
- Críticas ao Congresso e STF: denúncia ao Congresso considerado o mais conservador da história e à criação da Câmara de Conciliação com uma participação indígena simbólica, onde na prática, não há garantia de voz e escuta efetiva dos/aos povos indígenas;
- Lançamento da NDC e da Comissão para a COP-30: como estratégias para garantir protagonismo indígena nas decisões globais sobre o clima.
- Rejeição à exploração de combustíveis fósseis: alerta para os impactos socioambientais da exploração energética quando desrespeita os territórios indígenas.
A carta foi assinada pela APIB e suas organizações regionais, encerrando o ATL com uma mensagem clara: os povos indígenas seguirão como protagonistas na defesa da vida e do planeta.
Para o coordenador do Programa Povos Indígenas do ISPN, João Guilherme Nunes Cruz, ao longo de suas 21 edições, o Acampamento Terra Livre consolidou-se não apenas como um espaço de mobilização política, mas também como uma expressão viva e singular da diversidade cultural dos povos indígenas do Brasil.
“Nenhuma violência institucional, como a que a sociedade assiste atualmente, em especial no Congresso e na Câmara de Conciliação sobre o marco temporal e outras afrontas aos direitos constitucionais dos povos indígenas, ou mesmo as tentativas de repressão, são capazes de ofuscar a força dessa celebração e mobilização coletiva”, afirmou, destacando ainda a relevância dos 20 anos da APIB.
“A APIB é fruto do ATL e, desde sua criação, tornou-se a principal referência da luta indígena no Brasil. O ISPN se orgulha de ser parceiro da APIB e de caminhar ao lado do movimento indígena brasileiro.”
Por Sarah Pacini, de Brasília/DF