Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, descendente de nobres ingleses. Assim se apresentava um juiz de Direito denunciado pelo Ministério Público de São Paulo sob acusação de usar durante todo o exercício da magistratura documentos falsos e cometer crime de falsidade ideológica. Segundo a Promotoria, ele criou uma identidade falsa com a qual fez o curso de Direito, prestou concurso do Tribunal de Justiça paulista e até se aposentou. De acordo com a denúncia, seu nome é, na verdade, José Eduardo Franco dos Reis.
Edward, como se apresentava, viveu nessa situação por quase 45 anos, até que, no dia 3 de outubro de 2024, foi pedir uma segunda via da carteira de identidade no Poupatempo da Sé, na Região Central da capital paulista.
O problema é que, naquele ano, os registros de digitais do Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD) já haviam sido digitalizados e seus dados passaram a fazer parte do Sistema Automatizado de Identificação Biométrica (AFIS/ABIS). E o AFIS/ABIS emitiu um alerta. As digitais do juiz eram as mesmas de outra pessoa, um certo José Eduardo Franco dos Reis.
Ao requerer a segunda via da identidade, o juiz exibiu uma certidão de nascimento falsa, como se tivesse nascido em 11 de março de 1958. Com o alerta do AFIS/ABIS, a Delegacia de Combate a Crimes de Fraude Documental e Biometria instaurou uma investigação preliminar na qual constatou a duplicidade de identidade e a criação da pessoa fictícia Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield.
Os policiais confirmaram que o suspeito se chama José Eduardo Franco dos Reis e havia tirado seu primeiro RG em Águas da Prata, no interior paulista, em 1973. Cidadão pratense, nascido em 17 de março de 1958. Mas, em 1980, segundo a denúncia do Ministério Público, José Eduardo dos Reis compareceu a um posto da Polícia Civil e tirou o documento em nome de Edward Wickfield.
Para tanto, ainda conforme a Promotoria, o acusado apresentou um certificado falso de reservista do Exército, um documento que dizia ser ele servidor do Ministério Público do Trabalho, uma carteira de trabalho e um título de eleitor, todos com o nome falso.
Como, na época, as bases de documentos não se comunicavam entre si e os papéis não eram armazenados em sistema eletrônico, era fácil, conforme a denúncia, uma falsificação.
– Por razões desconhecidas, José Eduardo Franco dos Reis criou a figura de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield como uma personalidade diversa, porém, sem abandonar a identidade real, permanecendo com documentação dupla – escreveu o promotor Maurício Salvadori.
Em 1988, o acusado entrou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP). Lá, foi contemporâneo de Alexandre de Moraes, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que estava então no terceiro ano do curso. Em 1996, Edward Wickfield foi aprovado no concurso para a magistratura paulista. Aposentou-se em 2018 como titular da 35ª Vara Cível de São Paulo.
Ao ser aprovado no concurso, ele concedeu entrevista para uma reportagem sobre os aprovados no exame. Contou que era nascido no Brasil, mas descendia de nobres ingleses. Relatou ter morado até os 25 anos na Inglaterra, onde disse ter estudado Matemática e Física. O então futuro magistrado afirmou ainda que, ao voltar para São Paulo, tinha decidido estudar Direito na USP, embora o avô tivesse sido juiz no Reino Unido. E garantiu que “o precedente familiar” não o ajudou no concurso.
– Conheço pessoas com um passado muito tradicional que não passaram – declarou.
Durante o tempo em que julgou milhares de processos nenhuma das partes poderia imaginar que as queixas estavam sendo resolvidas por alguém que seria acusado de ter criado identidade falsa com a qual se tornou juiz.
– O denunciado não somente criou uma persona distinta, passando a conduzir sua vida com esses propósitos. Ao revés, de forma flagrantemente ardilosa, por mais de 40 anos enganou quase a totalidade das instituições públicas, traiu jurisdicionados e, sobretudo, manteve a real identidade operante com a qual também se identifica, potencializando os múltiplos falsos – afirmou o promotor.
Em janeiro deste ano, o acusado recebeu dos cofres públicos cerca de R$ 37,7 mil de remuneração e mais de R$ 120 mil em vantagens eventuais. Agora, é alvo de denúncia criminal da Promotoria oferecida à 29ª Vara Criminal da Capital, onde, conforme informou o TJ-SP, “o processo citado tramita em segredo de Justiça”.
Procurado, o TJ-SP informou que, “em relação ao juiz aposentado, considerando que há questão pendente de apreciação no âmbito jurisdicional, o Poder Judiciário não pode se pronunciar a respeito de efeitos de eventual condenação, que ainda não ocorreu”. O Tribunal destacou que é vedado aos magistrados se manifestarem a respeito de processos pendentes de julgamento.
– Do mesmo modo, considerando que se trata de magistrado aposentado, não há, ao menos por ora, que se falar em atuação administrativa do TJ-SP a respeito dos fatos – declarou a presidência da Corte estadual.
Do Pleno.News com informações da AE