Pluralismo religioso e direitos no Brasil pós-Constituinte

O preâmbulo da Constituição de 1988 cristaliza e projeta verbalmente a imagem de uma sociedade pluralista. Não é uma imagem efêmera nem sem consequências, como demonstram pesquisadores do Cebrap no recém-lançado “Religious Pluralism and Law in Contemporary Brazil” (Springer, 2023). Da Constituinte, o pluralismo emerge, pelo contrário, como artífice da nação.

As pesquisas reunidas no livro são fruto da observação das práticas de lideranças e organizações religiosas. Enfocam o que essas lideranças e organizações fazem e como o fazem. Em lugar de projetar suas convicções pessoais, os pesquisadores se propuseram a analisar como atores religiosos participam da “modelagem” de políticas públicas que vão da educação pública à população LGBTQIA+, bem como sua participação em debates no Legislativo e no Judiciário.

Nos anos 1980, em plena hegemonia católica, se pretendia que a imagem de uma “nação cristã” orientasse a atuação das instituições políticas e sociais. Daquela década em diante, no entanto, o poder de persuasão dessa imagem unificadora declinou, diversificaram-se os atores que falam em nome da religião e se intensificaram as disputas pela definição dos termos qualificadores do bem comum.

Essa mudança contextual renovou o olhar dos pesquisadores sobre as relações entre direito e religião. Ela suscitou perguntas relativas ao que a imaginação social foi capaz de engendrar, inventar e reconhecer como maneiras de viver em uma nação plural.

Pesquisadores encontraram nelas elementos que lhes possibilitaram construir um caminho de superação de uma perspectiva “externalista”, que limita a análise ao que o direito diz da religião (para regulá-la) e a como a religião se apropria (de modo que se alega indevido) do direito. No livro, como alternativa a esse entendimento, os autores analisam como o pluralismo se produz em campos tais como gênero, cultura, raça e a própria religião, quando atores religiosos e não religiosos buscam os Três Poderes da República como instâncias mediadoras.

A alternativa ao que chamamos de “perspectiva externalista” da religião é uma análise das dinâmicas sociais em um regime de pluralização. Com esse enfoque, se delineia especificamente uma operação intrínseca a esse regime: o entrelaçamento da religião e do direito por meio da ampliação dos mecanismos jurídicos de representação das diversidades. Esses recursos institucionalizam a sociedade civil como arena central dos processos de democratização, e a incorporação da linguagem dos direitos humanos por lideranças e instituições religiosas.

É bem sabido que a Constituição de 1988 trouxe novidades importantes relacionadas à ampliação dos instrumentos de representação. O mais conhecido deles é seu extenso catálogo de direitos individuais, coletivos e difusos. Mas esse catálogo teria tido menor importância se a Constituição não tivesse criado, ao mesmo tempo, instrumentos jurídicos que ampliaram a participação da sociedade na produção jurídica e nas discussões de temas candentes.

No Judiciário, a figura do “amigo da corte” (amicus curiae) possibilitou a atores religiosos participar, ao lado de atores não religiosos, nas discussões no Supremo Tribunal Federal. Essa participação possibilita a apresentação de argumentos que complexificam o debate sobre a interpretação de normas jurídicas em inúmeros temas como a criminalização da homofobia. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos, por exemplo, têm aproveitado sistematicamente essa via aberta pela Constituição.

Disputas pelo acesso e controle das agendas públicas produzem um incessante entrelaçamento da religião com o direito

No Poder Legislativo foram criados canais e ferramentas semelhantes, como, por exemplo, as audiências públicas, em que são ouvidos ativistas e especialistas na matéria sobre a qual se delibera, e as consultas públicas, feitas por meio eletrônico. A discussão sobre o Estatuto da Família, por exemplo, dá pistas de como lideranças e organizações religiosas usam categorias como “família”, “união estável” e “casamento” para fazer funcionar um discurso sobre direitos que disputa políticas públicas e a burocracia.

No Executivo os sucessivos governos pós-Constituição instituíram conselhos gestores em áreas consideradas estratégicas. Essa novidade incrementou a presença de associações civis religiosas e não religiosas no debate sobre a implementação de direitos, com acesso das organizações aos fundos públicos. Na medida que as relações delas com o Estado se complexificaram, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil de 2014 propôs soluções jurídicas e institucionais para normalizá-las. A normalização dessas relações, por sua vez, compeliu a uma reorganização da gramática das instituições religiosas. Essas instituições então passam a incorporar uma linguagem do social, do cultural ou dos direitos, ao se associar ao Estado para o exercício de alguma atividade subsidiada.

Esse conjunto de mecanismos jurídicos deu a diferentes segmentos da sociedade civil meios para representar seus interesses. Com ele, atores religiosos passaram, assim, a atuar na sociedade civil de modo cada vez mais organizado e nos Três Poderes da República.

Como mostra a análise das práticas de lideranças e organizações religiosas apresentadas na coletânea “Religious Pluralism and Law in Contemporary Brazil”, o conjunto de crenças e a obediência a dogmas e doutrinas que tomamos por “religião” no Brasil também mudaram nesse processo. Hoje as disputas pelo acesso e controle das agendas públicas produzem um incessante entrelaçamento da religião com o direito.

Um efeito desse entrelaçamento é a proeminência que a liberdade religiosa e a ideia de ideologia de gênero, por exemplo, ganharam no debate público. O aborto, pauta pouco relevante para evangélicos nos anos 1990, se transformou em campo de batalhas discursivas, abrindo espaço para alianças entre denominações cristãs. Esse exemplo mostra que, com a oferta de recursos, inclusive discursivos, treino e espaço para experimentação, instituições religiosas se tornaram instâncias privilegiadas de formação de mulheres e homens, brancos e negros, das camadas de baixa renda como sujeitos políticos em várias áreas de atuação.

Se lideranças, instituições e discursos religiosos são uma dimensão crucial do Brasil contemporâneo, é preciso compreendê-los. Nossa aposta nesse esforço de compreensão é a observação de como lideranças e instituições religiosas se apropriam da linguagem dos direitos e a reinventam ao associá-la a outros repertórios. Esse entrelaçamento desafia o enquadramento jurídico-político do secularismo, que pressupõe a religião como pertencente à esfera do privado.

Quando anuncia seu ideal de sociedade como sociedade pluralista, a Constituição lança atores religiosos e não religiosos em um processo indeterminado e permanente de definição dos termos, dos contornos e dos sentidos de direitos. O desafio posto a analistas sociais é compreender como as tensões que emergem nesse processo passam a constituir o campo jurídico, pressionando-o de dentro e de fora.

Paula Montero é professora no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e supervisora do projeto temático “Pluralismo religioso e diversidades no Brasil pós-Constituinte”, no Cebrap.

Renata Nagamine é pesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo do Cebrap.

Camila Nicácio é professora-adjunta na Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Pesquisadora no projeto temático “Pluralismo religioso e diversidades no Brasil pós-Constituinte”, no Cebrap.

Fonte Nexo
Foto: Pilar Olivares/REUTERS