Incentivos fiscais para melhoria de saneamento básico foram usados por concessionárias privadas na compra de novas outorgas, mostra pesquisa nacional

Um estudo sobre a privatização do setor de saneamento no Brasil revela o porquê de 40% da população ainda não ter acesso a rede de água e esgoto, mesmo passados mais de 10 anos do programa de incentivo fiscal federal, criado para financiar a expansão e melhoria dos serviços. As vencedoras dos leilões de saneamento vêm usando os recursos obtidos com o benefício tributário não para realizar obras essenciais, mas sim para comprarem outras concessões e aumentarem seu controle do saneamento básico brasileiro.

 

  • Segundo levantamento, empresas privadas usaram em benefício próprio R$ 5 de cada R$ 10 dos recursos captados na B3 por meio de incentivo governamental criado para levar água e esgoto a 84 milhões de brasileiros que não têm acesso a esses serviços.

 

  • Empresas emitem títulos de dívidas, recebem descontos em seus impostos, mas a maior parte do dinheiro obtido com essas operações no mercado de capitais vai para a financiar ou refinanciar os valores na aquisição de novas concessionárias, e não para investir nos serviços que elas já prestam.

 

Por meio da emissão de debêntures incentivadas – que são dívidas emitidas pelas empresas no mercado e contam com incentivo governamental –, elas captaram R$ 38,9 bilhões na última década, dos quais R$ 21,1 bilhões (54,3% do total) tiveram como destino principal ou secundário o pagamento total ou parcial de outorgas dos leilões de saneamento. Outorga é a permissão formal concedida pelo governo para a utilização do serviço.

Estes números fazem parte do estudo “o Sequestro do Financiamento do Saneamento Básico do Brasil”, realizado pelo CICTAR (sigla em inglês para Centro Internacional de Transparência e Pesquisa sobre Tributação Corporativa), em parceria com o SINDAE-Bahia (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente). A Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU), a Internacional de Serviços Públicos (ISP) e o Observatório de Direitos de Água e Saneamento (Ondas) estão apoiando o relatório.

Criadas pelo governo federal em 2011 pela Lei 12.431 para atrair recursos a projetos estratégicos de infraestrutura em diversos setores (de energia à mobilidade urbana), as debêntures incentivadas funcionam como empréstimos que as empresas de saneamento podem contrair de investidores no mercado de capitais que, até 2024, tinham isenção de imposto de renda sobre os rendimentos nesta operação. Com a Lei 14.801/24, a vantagem passou a ser da própria empresa emissora da dívida, que passou a deduzir um valor equivalente aos juros pagos neste “empréstimo” no imposto devido.

“A mudança pode ampliar ainda mais a captação de recursos pelas concessionárias privadas para financiar a compra das concessões de saneamento básico brasileiras, dado que elas podem descontar os juros do pagamento das debêntures do seu imposto de renda”, acrescenta Livi Gerbase, pesquisadora para América Latina e Caribe do Cictar.

Segundo ela, essa situação poderia ser evitada se o governo proibisse a emissão de debêntures incentivadas para o pagamento ou refinanciamento de outorgas em novos leilões, sobretudo em lotes do Sul e Sudeste do país, onde o retorno é mais lucrativo, mas não necessariamente onde há maior urgência de obras de melhorarias para o saneamento.

“A prática de pagar altos valores para o governo para garantir a vitória em um leilão de concessão de saneamento básico já gerou pelo mundo casos de corrupção e repasse dos altos valores das outorgas para os consumidores, tanto que a França, em 1995, proibiu esta prática. No Brasil, não só não estamos proibindo, estamos estimulando com recursos públicos”, diz.

O CASO BRK

Para ilustrar esse processo, o estudo analisou o caso da BRK Ambiental. Controlada pelo fundo de private equity canadense Brookfield, ela é a oitava maior empresa de saneamento do Brasil. De 2017, quando surgiu, até hoje, a BRK dobrou seu faturamento, chegou a ser avaliada pelos seus acionistas em cerca de R$ 10 bilhões, mas registrou resultados financeiros tímidos ou até prejuízos devido ao seu alto endividamento.

Isso porque os investidores sabem que a concessionária opera subsidiárias em mais de 100 municípios com taxas médias de lucro próximas a 10%, apesar de a empresa-mãe ter tido prejuízo médio de -0,1% no período de 2020 a 2024. Só nesses quatro anos, a BRK emitiu R$ 18,3 bilhões em dívidas, sobretudo debêntures, contra apenas R$ 7,8 bilhões em investimentos.

A maior expansão da BRK ocorreu em 2020, quando comprou a concessão da Região Metropolitana de Maceió por R$ 2 bilhões. Para isso, captou R$ 3,7 bilhões em debêntures, sendo R$ 1,9 bilhão em títulos com o incentivo fiscal. No entanto, nos três primeiros anos de concessão, os investimentos somaram apenas R$ 409 milhões, de acordo com dados publicamente disponíveis de 2020 a 2023. A companhia alega que o valor já investido na concessão é R$ 770 milhões. A maior parte dos bilhões captados ficaram para a rolagem de passivos e o pagamento de juros que, em 2024, ultrapassaram R$ 1 bilhão – cifra maior do que todos os gastos da companhia com pessoal.

De acordo com o estudo do Cictar, as consequências deste endividamento pesam sobre trabalhadores, cofres públicos e consumidores. O FI-FGTS, que detém 30% da BRK Ambiental Participações, recebeu apenas 1,43% dos dividendos que as subsidiárias pagaram para a empresa-mãe nos últimos cinco anos. Os salários e as condições de trabalho da empresa não acompanharam o crescimento do faturamento, e os impostos pagos foram irrisórios: em 2024, a BRK desembolsou apenas R$ 52,2 milhões, contra R$ 1,2 bilhão da concorrente Aegea, que fatura três vezes mais.

Para os usuários, os serviços chegaram mais caros e com falhas: a tarifa média da companhia subiu 71%, entre 2017 e 2024, percentual acima da inflação. Também são comuns as denúncias contra a empresa, que vão desde o lançamento irregular de esgoto, o descumprimento de contratos e as interrupções no abastecimento, resultando em multas de R$ 50 milhões por todo o Brasil, além de duas CPIs, em Tocantins e em Blumenau. “O caso BRK ilustra como a lógica das concessões no saneamento concentra ativos, valoriza empresas para uma futura revenda e gera endividamento crônico, sem garantir melhoria na qualidade nem expansão da rede de esgoto no Brasil”, avalia Fernando Biron do SINDAE-Bahia.

O relatório recomenda que o governo federal revise com urgência a política das debêntures incentivadas, proibindo seu uso para o pagamento ou refinanciamento de outorgas. A análise sugere ainda que órgãos como a Caixa Econômica Federal, que gere o FGTS, e o BNDES (responsável por estruturar os leilões) deixem de sustentar conglomerados privados e usem esses recursos para financiar diretamente a expansão do saneamento, com transparência e supervisão social. O relatório também cobra da BRK Ambiental explicações sobre seu endividamento elevado e a baixa contribuição em impostos e dividendos, ressaltando que a controladora canadense Brookfield não pode tratar o saneamento básico no Brasil como um simples ativo de sua carteira de investimentos, ávida por lucros.

A DESIGUALDADE DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL

 

– Em 2023, apenas 59,7% da população teve acesso à rede de esgoto.

– Na zona rural, apenas 5,6% tem esgotamento sanitário.

– O abastecimento de água ainda atende somente 83,1% do território nacional.

 

O QUE DIZ O NOVO MARCO DO SANEAMENTO BÁSICO

 

Em 2020, a Lei 14.026 alterou o Marco do Saneamento Básico de 2007 (Lei 11.445), criando metas de investimentos para universalização do serviço, com objetivo de chegar à cobertura nacional de 99% de atendimento de água e 90% para esgotamento sanitário até 2033. No lugar dos históricos investimentos públicos, o governo federal incentivou a entrada de empresas privadas no setor, permitindo ora a transferência do controle acionário de uma estatal para o capital privado, ou a criação de PPPs (Parcerias Público Privada) para a construção de novas redes ou a concessão, no formato de leilões, de um serviço em cidades ou regiões por períodos de em média 30 anos. Passados quase cinco anos da aprovação da nova Lei, 31 leilões de saneamento básico já foram realizados, frequentemente estruturados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ganhos pela empresa que oferece o maior valor de outorga ao governo.

Texto: Adriana Souza Silva/Agência Pauta Social