Morre Maria Augusta, autora de enredos como ‘O Amanhã’ e ‘Domingo’ que ficou conhecida pelo ‘luxo da cor’ no carnaval do Rio

A carnavalesca Maria Augusta morreu na sexta-feira (11) aos 83 anos. Em 1969, a jovem Maria Augusta Rodrigues, aluna da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ, ajudava seu professor, o carnavalesco Fernando Pamplona, a decorar o Copacabana Palace para o seu baile de carnaval. Ao fim da festa no tradicional hotel de Copacabana, coube ao também carnavalesco Arlindo Rodrigues, que trabalhava com Pamplona, fazer o convite que revolucionou a vida de Maria Augusta, à época com 27 anos.

— O Arlindo Rodrigues disse que eles estavam indo para o barracão do Salgueiro, pois o carnaval estava atrasado, e perguntou se eu queria ir junto. “Quero”, respondi. E fomos. Um caminhão havia levado toda a parte decorativa do baile, que seria reaproveitada pela escola. Quando chegamos lá, Arlindo apontou para uma alegoria toda branca e me disse: “Aquele carro é seu, vai decorar!” — recorda a carnavalesca, professora, comentarista e jurada do Prêmio Estandarte de Ouro, em entrevista ao GLOBO em 2015.

Maria Augusta “é uma das poucas mulheres com nome gravado no panteão dos grandes criadores do carnaval, ambiente dominado por homens, com doses de misoginia”, lembra a jornalista Flávia Oliveira no capítulo sobre “A artista da cor” do livro “Pra tudo se acabar na quarta-feira”, sobre os grandes criadores do carnaval, lançado este ano.

“Maria Augusta tinha um bordão que virou meme entre os amigos e nas redes sociais, e que sintetiza bem quem ela era: “Isso é uma coisa muito séria”, dizia ela volta e meia nas conversas sobre escolas de samba. Ela estudava profundamente os enredos, pensava muito no que via na Sapucaí, era reflexiva numa festa em que a maioria quer se descontrair. Aprendi com ela que o vermelho, dependendo da iluminação, pode se tornar uma cor sem viço; que porta-bandeira precisa estar com o queixo alto e o pavilhão bem para cima, por uma questão de altivez; que as esculturas das alegorias não podem estar fora da proporção; e que, se uma escola de samba não tem dinheiro para brilho, que use várias cores para dar a impressão de exuberância sem gastar muito, mas sem exagero no colorido, para que, da arquibancada, o conjunto não pareça um borrão. Tudo com ela seguia um critério rigoroso, era discutido. Uma grande pensadora, que influenciou mais de uma geração inclusive a minha. Sou muito grato” escreveu o jornalista Marcelo de Mello, presidente do júri do Estandarte de Ouro.

Maria Augusta morreu de falência múltipla dos órgãos. Ela estava internada desde junho no Hospital São Lucas, em Copacabana, na Zona Sul do Rio. O jornalista Bruno Chateaubriand, amigo e companheiro dela no júri do Estandarte de Ouro, conta que a carnavalesca descobriu um câncer na bexiga no início do ano, foi operada após o carnaval e iniciou o tratamento com imunoterapia, que provocou efeitos colaterais. Mas, segundo o jornalista, ela participou ativamente do carnaval de 2025, inclusive como julgadora do Estandarte.

“Ainda não consegui imaginar como serão meus dias de escola de samba, de desfiles na Sapucaí, sem Maria Augusta. Perdê-la é como perder um pedaço da história de todas as escolas de samba do Rio de Janeiro. (…) Ela era firme na defesa das tradições e do bom gosto. Hoje é um dia triste para mim. Mas, como sabemos que este é apenas um plano (entre tantos outros) tenho certeza de que, do outro lado, ela estará próxima ao setor das escolas de samba, estará ao lado de todos os artistas. Que sua passagem seja leve e tranquila. Te amo, minha eterna e amada Augusta”, escreveu Bruno Chateaubriand

CRIATIVIDADE, SIMPATIA E LEVEZA

Foi ao lado dos mestres Pamplona e Arlindo que ela deu seus primeiros passos na folia carioca. Arlindo era exigente com as cores e a encarregou da preparação das tintas, lembra Flávia Oliveira. “Nasciam ali a professora de Teoria da Cor da EBA/UFRJ e a carnavalesca conhecida pelos matizes fortes e sofisticados”, diz a jornalista, acrescentando que Maria Augusta acabou identificada como a artista do “luxo da cor”, que se contrapõe ao “luxo do brilho”, atribuído especialmente a Joãosinho Trinta.

No Salgueiro, foram três enredos campeões: “Bahia de Todos os Deuses” (1969), “Festa para um Rei Negro” (1971) e “O Rei de França na Ilha de Assombração” (1974). O último foi conquistado ao lado de Joãosinho Trinta, com quem assinou o enredo.

Nos anos 1970, Maria Augusta trocou a vermelho e branco da Tijuca pela União da Ilha. Na nova escola, fez carnavais inesquecíveis, embora não tenha ganhado títulos. Com simplicidade, no lugar do luxo e de alegorias imensas, o enredo “Domingo” (1977) é considerado um dos mais criativos da história dos carnavais. Em 1978, criou o memorável “O Amanhã”.

— “Domingo” nasceu de uma experiência pessoal. Quando vim para o Rio, estudei no internato do Colégio Bennett. Os domingos eram dias de alegria, eu aproveitava a folga para ir à casa dos meus avós, na Rua Almirante Tamandaré — relembrou.

Maria Augusta deu à Ilha o estilo “bom, bonito e barato”, de uma escola simpática e leve. Sem falar que “Domingo” e “O Amanhã” renderam sambas antológicos, feitos por compositores a partir dos seus enredos.

— A obra é a intuição — repetiu ela em entrevistas.

PAIXÃO NASCE NA INFÂNCIA

Maria Augusta também dizia que o carnaval era a essência de sua vida. Nascida em São João da Barra, no Norte Fluminense, em 23 de janeiro de 1942, ainda criança frequentava com a mãe as festas populares da região. Cedo, teve contato com os bois Pintadinho e Jaraguá. dançando na rua, desfile de rancho, desfile de caboclo e bailes de clube. Tudo muito colorido, uma de suas características como carnavalesca.

— O carnaval entrou em minha vida, nas estradas empoeiradas do norte do estado do Rio — relembrou em uma entrevista.

A fé entrou na sua vida quando trabalhava no enredo “Bahia de Todos os Deuses”. Filha de xangô, primeiro, descobriu a umbanda e, depois, o candomblé. Passou a usar contas de proteção no pescoço e quase sempre roupas brancas. Mas desde a infância já questionava a existência.

— Sempre fui muito mística. O que será do amanhã? De onde eu vim? Eu me faço essas perguntas desde criança, quando morava na beira do Rio Paraíba do Sul, numa usina de açúcar perto de Campos — disse ao GLOBO.

OUTRAS ESCOLAS

Além de Salgueiro e União da Ilha, Maria Augusta passou ainda por Paraíso do Tuiuti, de 1980 a 1983; Tradição (1985) e Beija-Flor (1993). Já considerava encerrada a carreira na função quando recebeu o convite de Anísio Abraão David, patrono da escola, para substituir Joãosinho Trinta, após 17 anos, na azul e branco de Nilópolis, explica Flávia Oliveira no livro “Pra tudo se acabar na quarta-feira”:

“Não foi simples substituir o artista que forjou a escola gigante, luxuosa e supercampeã. Augusta apresentou Uni-duni-tê, a Beija-Flor escolheu: É você, um enredo onírico, com inspiração no universo infantil, fantasias leves e multicoloridas, alegorias aquém da grandiosidade que se tornara marca da agremiação. Conseguiu um terceiro lugar”.

Em 2022, quando o Estandarte de Ouro comemorou 50 anos, Maria Augusta foi homenageada pelo prêmio. Este ano, ela foi enredo da escola mirim Aprendizes do Salgueiro (“Uni-duni-tê, o Aprendizes escolheu você!”.

Do Extra/Globo

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