O Ministério Público Federal (MPF) entrou com ação, na quinta-feira (4), em que pede à Justiça Federal decisão urgente que reconheça a nulidade ou determine a suspensão imediata da Licença de Operação (LO) concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) à Petrobras para a perfuração marítima de poços exploratórios no Bloco FZA-M-59, localizado na Bacia da Foz do Amazonas, na Margem Equatorial brasileira.
A ação fundamenta-se em uma extensa análise técnica que aponta falhas estruturais nos estudos ambientais apresentados pela estatal. O ponto central da argumentação do MPF é a ausência de um Plano de Compensação da Atividade Pesqueira (PCAP) para a fase exploratória, uma lacuna que, segundo procuradores da República, deixa desprotegidas milhares de famílias de pescadores e extrativistas, majoritariamente no estado do Pará, que terão seus territórios atravessados pela logística do empreendimento.
O MPF classifica a condução do licenciamento como um processo que resultou em uma “conclusão paradoxal”: o reconhecimento técnico de que haverá impactos negativos diretos, regionais e de grande importância sobre a pesca, sem a correspondente imposição de mecanismos eficazes de reparação.
A LACUNA DO PLANO DE COMPENSAÇÃO
De acordo com a ação, o Estudo de Impacto Ambiental (Eia) reconhece expressamente que a atividade de perfuração gera o impacto denominado “perturbação na atividade pesqueira artesanal”. O próprio estudo da Petrobras admite que o trânsito de embarcações de apoio para o transporte de materiais e equipamentos resultará na “convivência da atividade pesqueira com as embarcações operantes” e que “o efeito que pode ocorrer […] é a danificação dos artefatos de pesca em operação na água”.
Apesar desse reconhecimento, o licenciamento avançou sem a exigência do PCAP. A justificativa formal, contestada veementemente pelo MPF, baseou-se em um critério do Termo de Referência do Ibama de 2014, que condicionava a exigência do plano apenas à sobreposição da pesca com a área exata de perfuração do poço (a zona de exclusão de segurança de 500 metros).
Para o MPF, esse critério é “restritivo e desconectado da lógica territorial”. A ação argumenta que o principal impacto não ocorre apenas no ponto do furo (localizado a cerca de 160 km da costa do Amapá), mas sim ao longo das rotas das embarcações de apoio que partirão do Porto de Belém (PA).
“A desconexão inaceitável entre os impactos ambientais e socioeconômicos de média e grande magnitude […] e a ausência de medidas de mitigação e compensação socioambientalmente adequadas […] conduziu o processo de licenciamento a uma conclusão paradoxal: o reconhecimento de impactos negativos diretos, regionais e de grande importância, sem a correspondente imposição de mecanismos eficazes de reparação e compensação”, afirmam os procuradores da República na Ação Civil Pública.
O MPF sustenta que as medidas propostas pela empresa, limitadas a projetos de comunicação social e educação ambiental, foram classificadas no próprio Eia como de “baixa a média eficácia”, incapazes de reduzir o dano real. A ação exige que a definição da necessidade do PCAP observe o conceito de “Território Pesqueiro” (definido em Nota Técnica do próprio Ibama de 2022), que engloba não apenas a área de captura, mas também os trajetos das embarcações e locais de desembarque.
PARÁ COMO EPICENTRO DOS IMPACTOS
Embora o bloco de petróleo esteja situado na costa do Amapá, a ação demonstra que o estado do Pará absorve a maior parte do ônus socioambiental devido à infraestrutura logística. A base de apoio marítimo e aéreo está conectada a Belém e a Oiapoque, mas a rota das embarcações, para a qual são previstas cerca de três viagens semanais, atravessa áreas vitais de pesca na costa paraense.
A ação denuncia o subdimensionamento da Área de Influência (AI) do projeto. O MPF aponta que municípios paraenses como Bragança e Augusto Corrêa foram excluídos da Área de Influência, apesar de mapas do próprio Eia mostrarem “sobreposição expressa entre as áreas de pesca artesanal de uso contínuo e as rotas das embarcações de apoio”.
A exclusão foi justificada pela empresa sob a alegação de “uso ocasional” das áreas, argumento refutado pelo MPF com base em laudos periciais e dados de monitoramento que indicam uso durante o ano inteiro.
Além disso, a ação pede a inclusão imediata dos municípios de Primavera (PA) e Capanema (PA) na Área de Influência. O Plano de Gerenciamento de Resíduos da perfuração lista empresas sediadas nessas cidades como destino final para fluidos de perfuração e cascalhos, o que gera impacto direto na infraestrutura local, fator ignorado na delimitação oficial dos impactos.
MARETÓRIOS E A INVISIBILIDADE CARTOGRÁFICA
Para subsidiar a ação, o MPF utilizou estudos técnicos do grupo Ecologia Humana, Natureza e Populações Amazônicas (Ehnapam), vinculado à Universidade Federal do Pará (UFPA), e do Projeto Maretórios Amazônicos, ligado à UFPA, à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e à Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisa introduz o conceito de “maretório” (território marcado pela dinâmica das marés) para contestar a cartografia apresentada no licenciamento.
Segundo a ação, os mapas do Eia mostram as áreas de pesca de forma “fragmentada, como ilhas isoladas no oceano”, o que é classificado como “irreal” pelos peritos, já que os pescadores se movem continuamente seguindo cardumes e marés.
A comparação entre os mapas da empresa e os produzidos pelos pesquisadores em colaboração com as comunidades (cartografia social) revelou discrepâncias graves. No caso da Vila de Jubim, em Salvaterra (arquipélago do Marajó, no Pará), grande parte do território tradicional de pesca ficou fora da área delimitada pelo estudo ambiental oficial.
“A consequência direta desses erros é a seguinte: se os mapas estão errados, a ‘área de influência’ do projeto está subestimada. Isso significa que comunidades que serão fortemente impactadas podem ter sido deixadas de fora da análise”, alerta a ação.
Os estudos confirmam ainda a “conexão territorial” entre o Pará e o Amapá: a frota artesanal de 14 Reservas Extrativistas (Resex) da costa paraense depende vitalmente dos recursos pesqueiros da costa amapaense, deslocando-se por centenas de quilômetros até áreas que se sobrepõem à zona de influência do Bloco FZA-M-59.
FALHAS NO DIAGNÓSTICO REGIONAL
A ação ataca duramente a qualidade do Estudo Ambiental de Caráter Regional (EACR), documento que deveria servir de referência para a bacia. O MPF aponta que a coleta de dados primários (visitas em campo) foi insuficiente.
Uma tabela apresentada na petição revela que, em municípios-chave do Pará como Salvaterra, Bragança e Augusto Corrêa, menos de 10% das comunidades identificadas foram efetivamente visitadas para coleta de dados. Em Belém, de oito comunidades identificadas, apenas uma fração foi estudada in loco.
O MPF também destaca a utilização de dados obsoletos sobre Unidades de Conservação (UCs). O estudo da empresa lista 15 UCs na área, enquanto dados oficiais atualizados indicam a existência de 35 UCs costeiras entre Amapá e Pará que deveriam ter sido consideradas.
VIOLAÇÕES E PEDIDOS
A ação sustenta que a emissão da licença sem a realização da Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) viola a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A Petrobras e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) argumentaram no processo administrativo que a consulta não caberia nesta fase ou geraria “estresse social desnecessário”, tese rejeitada pelo MPF, que defende a consulta como condição de validade do licenciamento antes de qualquer decisão que afete os modos de vida dessas populações.
Diante do exposto, o MPF pediu à Justiça Federal:
- Nulidade ou suspensão da licença: A interrupção imediata dos efeitos da LO nº 1.684/2025.
- Nova caracterização da Área de Influência: Inclusão obrigatória dos municípios de Primavera, Capanema, Bragança e Augusto Corrêa (PA), reconhecendo as cartografias sociais.
- Realização de novos estudos: Estudo de Desembarque Pesqueiro, para quantificar a produção real e a dependência econômica da região, e Estudos de Componentes Indígenas, Quilombolas e de Povos e Comunidades Tradicionais pescadores tradicionais e extrativistas costeiros (ECI/ECQ/ECT), para avaliar impactos específicos sobre esses grupos.
- Plano de Compensação (PCAP): A elaboração de um plano que compense integralmente os impactos operacionais (como a modificação de rotas e diminuição de estoques) e não apenas acidentais.
- Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI): A realização da consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT com todas as comunidades afetadas.
VIOLAÇÃO DA DEVIDA DILIGÊNCIA REFORÇADA
O MPF argumenta que permitir o avanço da perfuração com base em um diagnóstico falho viola o princípio da precaução e coloca em risco a segurança alimentar de uma região que possui um dos maiores consumos per capita de pescado do mundo. A ação também cita o contexto de emergência climática e a incoerência de expandir a fronteira petrolífera em áreas sensíveis como o Grande Sistema de Recifes da Amazônia (GARS).
A ação sustenta que a licença ambiental emitida para a perfuração exploratória de petróleo na Foz do Amazonas viola o dever de “devida diligência reforçada”, conforme o Parecer Consultivo nº 32/2025 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que aborda a emergência climática e direitos humanos. Segundo o documento, essa obrigação exige que o Estado aplique uma diligência que seja adequada e proporcional ao grau de risco de dano ambiental, sendo balizada pela melhor ciência disponível e pelas normas internacionais pertinentes. O padrão reforçado imposto pela Corte IDH, no contexto da crise climática, demanda a identificação e avaliação exaustiva, detalhada e profunda dos riscos, além da adoção de medidas preventivas proativas e ambiciosas. Isso inclui a obrigação de supervisionar e fiscalizar estritamente as atividades públicas e privadas que geram emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), como a exploração e o processamento de combustíveis fósseis.
O MPF argumenta que o Estado brasileiro falhou gravemente no cumprimento dessa diligência, especialmente por ignorar o impacto desproporcional do empreendimento sobre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. O dever de devida diligência reforçada exige o cumprimento estrito das obrigações de procedimento, como o acesso à informação, a participação e, crucialmente, a obtenção do consentimento livre, informado e prévio para medidas de grande escala que possam ter maior impacto nesses territórios. Para o MPF, a emissão da licença sem a realização da nova Caracterização da Área de Influência, do Estudo de Desembarque Pesqueiro e dos Estudos de Componentes Indígenas, Quilombolas e de Povos e Comunidades Tradicionais, e sem a efetiva CLPI, representa uma violação grave que pode justificar a responsabilidade do Brasil perante cortes internacionais.
Do MPF
