COP das Baixadas coloca comunidades periféricas de Belém no centro do debate climático

Nas partes baixas de Belém, entre palafitas e rios que cortam a cidade, jovens das baixadas transformam ruas e casas em espaços de cultura e criatividade. É ali, onde a água sobe e o saneamento falta, que eles desenvolvem projetos de arte, história e tecnologia, denunciando os impactos da crise climática que atingem suas comunidades. A COP das Baixadas nasceu três anos atrás desse impulso: criar um evento que colocasse a periferia no centro do debate climático. Neste ano, com a cidade como sede da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), a conferência periférica chega mais potente, reunindo moradores e organizações para mostrar que os mais vulneráveis aos efeitos do clima não podem ser excluídos das discussões climáticas.

Jean Ferreira é um dos organizadores da COP das Baixadas, que reúne uma coalizão com 14 organizações que têm em comum a articulação e o fortalecimento de pautas relacionadas à justiça climática das periferias urbanas da Amazônia. Elas desenvolvem ações em diferentes frentes de arte, mobilidade urbana, pesquisa e agroecologia. Ele diz à InfoAmazonia que, quando recebeu a notícia de que a sua cidade seria a sede da COP30, teve dificuldade para identificar os próprios sentimentos: Felicidade? Tristeza? Preocupação? “Ninguém pediu a opinião dos paraenses. A gente teve que aceitar”.

Jean participou das últimas três conferências climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU) — Egito, Dubai e Azerbaijão — e viajou representando o Gueto Hub, um espaço cultural que resgata a memória do bairro do Jurunas, na zona Sul da cidade, e realiza monitoramento socioambiental e climático da região.

Ele observou uma prática comum nessas conferências climáticas da ONU: as programações ignoram as questões locais onde estão sediadas. Para Jean, os textos e acordos finais também precisam incluir o olhar das populações anfitriãs. “Eu não entendo como, em 30 edições, o mundo ainda não pensou que é estranho fazer tantas conferências, uma em cada país, sem de fato considerar o lugar em que você está fazendo cada COP. Mas, na Amazônia, nós não iríamos permitir que isso acontecesse, porque temos um movimento social forte”, afirma.

Neste ano em que Belém recebe a COP30, a conferência periférica foi organizada para ser maior e mais potente. A programação ocorreu de 22 a 24 de agosto, na Vila da Barca: uma das maiores comunidades de palafitas da América Latina, com cerca de 100 anos de história, marcada tanto pela promoção da arte e cultura quanto pela ausência de serviços básicos.

Durante os três dias de evento, crianças, lideranças indígenas, pesquisadores, moradores de comunidades, artistas e agricultores participaram das atividades junto a moradores de outros bairros de Belém, além de representantes da sociedade civil, da imprensa e do poder público. Cada grupo compartilhou como a crise climática afeta seu cotidiano, trabalhos e estudos, em diálogos que trataram de temas como mobilidade urbana, limpeza dos igarapés, cultura e clima, além das estratégias de adaptação nos territórios.

“As baixadas são áreas marginalizadas, localizadas nas partes mais baixas da cidade. Se a gente sair aqui na rua e olhar para cima, dá para ver que ela sobe, tem esse movimento. Nós estamos justamente na parte baixa”, diz Suane Barreirinha, artista, com formação em técnica de fotografia, e ativista climática da Vila da Barca.

Todas as atividades da COP das Baixadas destacaram como as comunidades vêm sendo excluídas das melhorias e discussões oficiais da COP30. Um exemplo recorrente foi o planejamento das obras preparatórias para o evento em Belém. O Observatório das Baixadas, organização que atua com pesquisa, produção de dados, advocacy e ações educativas nas comunidades, analisou informações oficiais e mapeou as intervenções em infraestrutura anunciadas pelo Governo do Pará. As obras preparatórias incluem restauração de avenidas, implantação de redes de esgoto, reformas em escolas, revitalização de praças, terminais e espaços comerciais. Mas não incluem as periferias.

Yellow zones para um debate local

Para ampliar o espaço de debate, a organização da COP das Baixadas lançou as Yellow Zones, ou Zonas Amarelas, uma resposta à metodologia aplicada pela ONU: oficialmente, na conferência, existe a Zona Azul (Blue Zone), espaço reservado às negociações oficiais; e a Zona Verde (Green Zone), aberto à sociedade civil com atividades culturais, de mobilização, e toda uma programação envolvendo governos, acadêmicos e organizações.

As Yellow Zones estão localizadas nas sedes de oito organizações participantes: a Barca Literária, Casa Samaúma, Gueto Hub, Mirante da TF, Seja Democracia, Pedala Mana, Chibé e Fundação Escola Bosque. A proposta é que, durante as duas semanas da Conferência oficial em novembro, elas recebam atividades, oficinas, palestras e rodas de conversa, todas com temáticas voltadas para o clima. O público-alvo são os moradores dos territórios onde estão sediadas, que não têm fácil acesso à Green Zone, a área oficial da COP que, embora aberta à sociedade civil, também exige inscrição para as atividades. A programação da Zona Amarela já está ocorrendo e deve se intensificar durante a conferência.

Ruth Costa, do Coletivo ParaCiclo, luta por mobilidade urbana e acessível em Belém, e vai promover encontros para debater o direito à cidade nas Zonas Amarelas: “O que vai ser discutido na conferência é muito importante, mas eu não estou fazendo questão de estar lá, porque o que queremos é discutir as questões que tocam a nossa cidade. Promover arte e cultura com os debates que importam”.

Jean Ferreira afirma que as zonas não devem ser separadas, mas que as Yellow Zones fazem parte de uma estratégia pensada para constranger os países que fazem parte da convenção e a própria ONU. Dessa forma, as organizações pretendem realizar ações e protestos, todos feitos por pessoas que foram excluídas do processo e que sofrem as consequências do aquecimento global.

“Nós estaremos na Blue Zone e na Green Zone também, fazendo as agendas para a comunidade global climática. Mas a gente propõe falar das coisas que estão acontecendo fora e fazer com que eles sintam vergonha, mostrando o que estamos fazendo com o pouco dinheiro e ‘vocês aqui com 10% do financiamento para se produzir uma conferência poderiam estar promovendo isso tudo aqui’”, explicou.

“A COP também aprende a longo prazo, a muito longo prazo. Nem sempre falamos de floresta, nem sempre falamos de adaptação. Queremos chegar lá, mas vai demorar muito. A conferência já está errada quando não dá margem para a sociedade civil ter mais protagonismo local. A pedagogia utilizada dentro da COP oficialmente para debater o clima no mundo também é deficitária”, completa Jean.

CLIMA E CULTURA

Nesta edição, a COP das Baixadas aconteceu no Curro Velho, complexo cultural e educacional gerido pelo estado do Pará, que fica na Vila da Barca. O casarão histórico, que antes abrigava o matadouro municipal, hoje funciona como um núcleo de oficinas de arte, ofício, e capacitação para jovens e adultos, incluindo aulas de música, teatro e dança. Todas as discussões sobre justiça climática, gênero, ancestralidade, raça, mobilidade urbana e limpeza dos rios foram intercaladas com apresentações de música, teatro, cinema e fotografia.

Suane Barreirinha é um exemplo de como a vida tomou um rumo diferente depois da arte. É uma mulher negra e lésbica. Caminhando com a reportagem pela Vila da Barca, foi cumprimentada por crianças, mulheres e idosos. “É no Curro Velho que temos a iniciação artística, conhecemos o ofício da arte. Isso nos garante um futuro diferente. Eu fico arrepiada ao falar disso. Se não fosse esse lugar, eu não seria artista. Eu não estaria aqui para te contar essa história”, afirma.

Suane colabora com o projeto da “Barca Literária”, uma biblioteca para crianças e adolescentes, localizada em uma casa de palafitas, na comunidade. As fundadoras, Gisele Mendes e Cleia Carmo, são responsáveis por reunir as crianças toda semana, com leituras de livros, rodas de conversa, atividades de colagens e pinturas.

Elas não recebem salário para fazer as atividades. Costumam propor o projeto em editais, pagam as contas da casa, das programações e pagam salário para si mesmas apenas quando possível. O objetivo é colaborar com a formação das crianças.

“A gente senta na roda de conversa e fala do que a cultura indígena e negra ensina pra gente – no chão, a gente não precisa de cadeira. O nosso saber, ele é igual. Elas [as crianças] ensinam pra gente também. Elas falam sobre clima e justiça social”, diz Gisele.

Quando o esgoto ‘sobra’ para a comunidade

Uma obra anunciada pelo governo do estado do Pará em preparação para a COP30 impactou diretamente a comunidade da Vila da Barca. O projeto prevê melhorias no saneamento do Canal da Doca, que fica ao longo da Avenida Visconde de Souza Franco, localizado no bairro do Reduto, área nobre da cidade. O canal, que historicamente funciona como esgoto a céu aberto, está recebendo mais de R$ 300 milhões em intervenções urbanísticas: 1,2 quilômetros de obras com paisagismo, passarelas, mirantes, quiosques, parque infantil, academia ao ar livre e a instalação de comportas para conter enchentes.

O esgoto produzido pelos moradores dessa região nobre, antes despejado diretamente no canal, passou a ser coletado e direcionado para uma estação de tratamento dentro da Vila da Barca. Na prática, a comunidade periférica recebeu a estrutura que processa os dejetos de um dos metros quadrados mais caros de Belém, sem que houvesse consulta pública ou diálogo prévio com os moradores.

Por isso, os moradores passaram a denunciar o caso como racismo ambiental — quando grupos vulneráveis, geralmente comunidades periféricas, negras, indígenas — são desproporcionalmente mais expostos aos impactos climáticos e ambientais pelo poder público e pela própria sociedade.

“Nós fomos surpreendidos pelas placas. Não soubemos de nada. Isso me revoltou 100%, porque estamos denunciando o caso de racismo ambiental. Porque aqui vamos receber o esgoto dos moradores da Doca, que é o metro quadrado mais caro da cidade, que é o bairro que fica no limite com a gente. Hoje não temos tratamento de esgoto. A nossa tubulação de água é de 1985”, diz Suane.

Após as denúncias, feitas desde o segundo semestre do ano passado, o governo deu início a obras para levar acesso à água e ao sistema de esgoto também para a Vila da Barca, em 28 de julho deste ano, que ainda não foram concluídas. Essa medida não afetou a obra para o esgoto do Canal da Doca, que já estava em andamento e continua sendo desviado para a comunidade.

IDENTIDADE DAS BAIXADAS

Movimentos sociais de Belém reivindicam que as baixadas sejam reconhecidas por meio de novos mapeamentos e registros censitários realizados por pesquisadores e instituições governamentais, o que ainda não ocorreu. O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) enquadra algumas dessas localidades como “favelas e comunidades urbanas”, ou seja, áreas com irregularidade fundiária, déficits no acesso a serviços públicos e convivência comunitária entre os moradores.

“Nós não somos favela no contexto que eles [IBGE] compreendem como favela. As baixadas têm uma relação diferente com o território, que tem a presença dos rios ao redor. Estamos buscando coletar dados que identifiquem essas características próprias”, explica Suane Barreirinha.

Construídas sobre os rios, as baixadas estão em um ambiente diferente das favelas de outras regiões do país, muitas vezes localizadas nas encostas de morros. Inicialmente, o processo de ocupação em Belém respeitou os cursos d’água, mas o crescimento populacional e migratório acabou expandindo essas regiões. Sem políticas públicas adequadas, os igarapés foram soterrados ou poluídos.

De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as baixadas são caracterizadas por serem áreas mais sujeitas a inundações, com palafitas contornando as margens e divisores das águas dos igarapés, com registros consolidados em finais dos anos 1930. “Em geral, a lógica de assentamento destas populações está relacionada à busca por centralidade [estar mais próxima da região do comércio, na cidade], acessibilidade espacial e situação de titularidade pública [e fragilidade ambiental] das terras alagáveis da cidade”, diz o documento.

É essa busca por acesso que continua sendo a maior bandeira da sociedade civil. O intuito é garantir a permanência dos seus territórios, com dignidade. A COP das Baixadas e as Yellow Zones são os espaços para refletir sobre essas conexões e valores locais. “O mundo aceitou-se capitalista e ocidentalista e gosta de permanecer assim. Mas eles não são a maioria, né? Nós somos e queremos falar”, diz Jean Ferreira.

 Por Isabela Toledo/Fotos: Gisele Mendes, Cleia Carmo e Luis Ushirobira/InfoAmazonia