O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), por meio da 18ª Câmara Cível, decidiu, à unanimidade, reintegrar a posse de um imóvel à Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), após reconhecer que a permanência de uma ex-pastora no local configurava esbulho possessório, ou seja, a retirada da posse legítima de quem a detinha originalmente. Caso semelhante transcorre pela Justiça no Estado do Pará, envolvendo a chamada Catedral da Família, no bairro do Guamá.
A decisão foi tomada no julgamento da Apelação Cível nº 5005546-08.2019.8.21.0039/RS, em que figurava como apelante a Sra. Santa Trindade Madril Antunes, e como apelada, a Igreja do Evangelho Quadrangular, representada por seus advogados Greice Lidiane da Silva Schmidt, João Paulo Fernandes e Clairton Macedo Valgas. O relator do processo foi o Desembargador João Pedro Cavalli Junior, que votou pela manutenção da sentença de primeiro grau.
A ação se originou quando a Igreja, proprietária formal do imóvel, ajuizou pedido de reintegração de posse sob a alegação de que a ex-pastora, desligada da função ministerial, se recusava a desocupar o imóvel utilizado anteriormente em razão de suas atividades eclesiásticas.
O imóvel, registrado em nome da Igreja, era utilizado como templo e também como residência pastoral. Após o desligamento da religiosa, a Igreja solicitou a devolução do espaço, tendo sua solicitação negada extrajudicialmente pela ocupante, o que motivou a ação judicial.
Decisão judicial fundamentada no direito possessório
Em sua fundamentação, o relator destacou que, conforme o artigo 561 do Código de Processo Civil, para que se configure o direito à reintegração de posse, é necessário que o autor da ação comprove:
- a posse anterior legítima;
- a ocorrência de esbulho, turbação ou ameaça à posse;
- e a data do fato que gerou a perda ou ameaça.
Os desembargadores entenderam que a Igreja demonstrou todos os requisitos exigidos, especialmente a posse anterior do bem, por meio de documentos e registros formais. Ficou ainda comprovado que a ex-pastora exercia apenas uma “detenção precária” do imóvel, ou seja, estava no local em razão de sua função dentro da estrutura eclesiástica, sem qualquer direito autônomo ou pessoal sobre o bem.
A jurisprudência dos tribunais superiores tem sido clara sobre essa distinção. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, reconhece reiteradamente que “detentor é aquele que exerce o poder de fato sobre o bem em nome de outrem, não possuindo animus domini” (REsp 1.335.153/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão).
Na doutrina, autores como Maria Helena Diniz e Orlando Gomes apontam que, no caso das instituições religiosas, os bens são destinados ao uso funcional dos membros, mas permanecem como patrimônio exclusivo da entidade religiosa, dotada de personalidade jurídica própria. A função pastoral, ainda que prolongada no tempo, não gera direito possessório nem expectativa de aquisição, salvo disposição expressa em contrato formal, o que não se verificou neste caso.
Implicações mais amplas para instituições religiosas
A decisão do TJRS serve como precedente relevante para o campo do Direito Eclesiástico e do Direito Patrimonial das entidades religiosas, especialmente em contextos de transição ministerial ou desligamento de lideranças. Em muitas instituições, pastores e líderes espirituais exercem atividades em imóveis pertencentes à organização religiosa, os quais permanecem registrados e mantidos pela pessoa jurídica da igreja.
Conflitos ocorrem, por vezes, quando há rupturas entre os dirigentes locais e a administração central ou regional, ou quando ex-líderes alegam direitos possessórios sobre templos ou imóveis ocupados durante seu exercício. Nesse contexto, a jurisprudência tende a reforçar que a função pastoral não gera posse civil plena, mas mera detenção, condicionada à permanência no cargo e à observância das normas internas da igreja.
POSICIONAMENTO FINAL
No caso julgado, os desembargadores consideraram evidente o esbulho, diante da recusa da ocupante em restituir voluntariamente o imóvel após o término de sua função. Reafirmaram, ainda, que a propriedade formal e o direito de posse estavam documentados em nome da IEQ, não havendo direito à retenção por parte da ex-pastora.
Com isso, a sentença de primeiro grau foi integralmente mantida, e a Igreja foi reintegrada na posse do bem, assegurando a continuidade de suas atividades e sua autonomia institucional sobre o patrimônio eclesiástico.
CONCLUSÃO
A decisão do TJRS reforça um entendimento cada vez mais consolidado nos tribunais brasileiros: os bens de uso funcional de igrejas e instituições religiosas pertencem exclusivamente à entidade e não a seus ministros ou representantes. Assim, mesmo quando um líder religioso exerce atividades em determinado imóvel por anos, isso não lhe confere automaticamente qualquer direito à posse ou à permanência, salvo se houver contrato formal que determine o contrário.
Este caso específico pode vir a servir como marco de esclarecimento jurídico e eclesiástico, prevenindo disputas semelhantes e garantindo a segurança jurídica patrimonial das organizações religiosas em todo o país.
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